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Futebol: aliado da Educação Jurídica?

Gordon France - O roubo da bola

* “Fifty/fifty”, obra (aquarela) de Gordon France

 

Que tal aprender Teoria da Norma Jurídica com o Futebol?

No mês de setembro de 2013, pesquisadores do projeto “Por uma atualização curricular e pedagógica: novas perspectivas para a educação jurídica” (NPEJ) aplicaram um questionário em sala de aula, durante o horário de aula cedido por professores apoiadores do projeto, em turmas dos turnos diurno e noturno dos 3º, 4º, 6º, 8º e 9º períodos (o curso possui 10 períodos) da citada Faculdade de Direito da UFMG. Ao todo, o grupo coletou e analisou questionários de 568 alunos de um universo de 2.161 alunos matriculados (Bueno et al, 2014, p.11).

As respostas indicam a aula expositiva como o método com o qual os estudantes mais aprendem (37,3%), mas entre os alunos que assim se manifestaram, 61,6% admitiram realizar atividades paralelas durante as aulas. Para Fonseca (Bueno et al, 2014, p.40-41), os dados como um todo sugerem que a preferência pela aula expositiva não decorre tanto da sua aptidão como melhor método, mas com o fato de ela dar aos alunos o conforto para realizarem outras atividades enquanto a aula acontece.

Fonseca associa o fenômeno à percepção de que nas aulas expositivas tem-se, normalmente, não tanto a discussão de investigações originais, mas a repetição de conteúdos manualescos. Das respostas, é possível inferir também que a maior parte dos estudantes teve pouco contato com outras técnicas ou métodos de ensino (Bueno et al, 2014, p.40-41), sem mencionar a possibilidade de sua má utilização.

Fui incumbido de lecionar Teoria Geral do Direito nas duas turmas do turno noturno da Faculdade de Direito da UFMG durante o primeiro semestre de 2014. Um dos temas clássicos do Direito é o de saber o que é uma norma jurídica, e como ela se diferencia das outras normas que pautam nosso comportamento. Arrisco dizer que a resposta mais popular nos cursos de Direito do Brasil, até hoje, seja a que foi sistematizada pelo italiano Norberto Bobbio em duas obras publicadas originalmente no final da década de 1950 e no início da década de 1960 – “Teoria da Norma Jurídica” e “Teoria do Ordenamento Jurídico”.

Ambas as obras são adotadas oficialmente pelo Plano de Ensino da disciplina, que integra o rol de disciplinas do 2º período (o curso é dividido em 10 períodos, cada qual correspondendo a um semestre). O Plano é pré-aprovado pelo departamento, e é composto, basicamente, por uma ementa e um programa, além da indicação de bibliografia básica e de bibliografia complementar. Não há indicação de técnicas de ensino.

Na preparação das aulas, preocupei-me, em particular, com a concepção de situações concretas em que os estudantes pudessem aplicar os conceitos de Teoria da Norma Jurídica, porque julgava que isso poderia ser uma ferramenta pedagógica interessante e potencialmente capaz de (i) produzir maior envolvimento dos alunos com a disciplina e (ii) aumentar as chances de aprendizado e memorização.

O conteúdo básico é até relativamente simples; usando o critério da reação ou resposta à violação de uma norma, é possível identificar três tipos principais (Bobbio, 2001, p.154-176):

  • normas morais – regras de conduta que, caso violadas, ensejam apenas uma reação ou resposta íntima, pessoal;
  • normas sociais – caso descumpridas, ensejam uma reação externa imediata, não institucionalizada e nem sempre constante com as reações anteriores em situações semelhantes do passado (por isso, potencialmente desproporcionais, como bem ilustram, e.g., os linchamentos);
  • normas jurídicas – se caracterizam por fazerem parte de um sistema de normas que, na maior parte dos casos, responde às violações das normas por meio de respostas que, a exemplo das normas sociais, são também externas ao indivíduo perpetrador, mas que, diferentemente delas, são respostas ou reações institucionalizadas (por isso, tendentes à proporcionalidade em relação aos casos semelhantes).

Mas como fazê-lo mais atrativo para os estudantes? Como tornar o aprendizado mais efetivo?

Tive um insight de usar um caso real de violação de norma de fair play numa partida de futebol profissional. Percebi que a situação me permitia trafegar por todos os três tipos principais de normas segundo o critério da resposta à violação.

Usar o caso me pareceu particularmente atraente, também, porque um número relevante de estudantes já havia manifestado interesse por futebol em diferentes ocasiões (algo esperado, considerando a proeminência desse esporte na cultura nacional).

Ademais, é razoável conjecturar que, naquelas ou em outras turmas, haja uma presumível minoria que não simpatize com o esporte, o que é ótimo do ponto de vista pedagógico: não gostar também é ter uma ligação afetiva, e, além do mais, também já foi reportado na literatura o papel do desconforto como catalisador de processos de conhecimento (Bueno et al, 2014, p.40; Ribeiro, 1999).

A situação explorada: no final de 2012, no confronto entre as equipes de futebol do Nordsjaelland (Dinamarca) e do Shakhtar Donetsk (Ucrânia) pela Liga dos Campeões da Europa, o jogo foi interrompido para atendimento de um atleta da equipe dinamarquesa. Quando a bola foi alçada ao chão para o recomeço, o meia Willian, do Shakhtar, deu um chutão para frente para devolvê-la ao adversário quando Luiz Adriano, atacante companheiro de clube de Willian, resolveu aproveitar-se da situação, interceptando a bola para em seguida avançar sem marcação, driblar o goleiro e marcar o gol de empate do seu time.

 

luiz adriano

* O atacante Luiz Adriano, logo após marcar o gol polêmico.

 

Nos jogos de futebol, a devolução da posse de bola é considerada um ato de “fair play”, ou “jogo limpo”, extremamente comum. A situação típica é exatamente aquela em que, quando um jogador se machuca, alguém do time adversário chuta a bola para fora a fim de permitir a interrupção da partida e o consequente socorro célere ao atleta rival. Diante disso, espera-se que o time do jogador socorrido devolva a posse de bola ao rival como agradecimento pelo ato. Por vezes, é o próprio juiz que interrompe a partida. Pelas regras do jogo, o recomeço da partida é feito por meio da “bola ao chão”, i.e., o juiz solta a bola onde ela se encontrava no momento da interrupção. Geralmente, a bola jogada ao chão não é motivo de disputa entre os atletas rivais: um dos atletas da equipe que não detinha a posse da bola no momento da interrupção, segundo o espírito esportivo do “fair play”, simplesmente “devolve” a bola ao rival. O ato é tido como justo, porque de alguma maneira restaura o status quo prévio à interrupção, ou se aproxima disso; e é tido como moral e cortês precisamente por ser opcional: naquele momento, o atleta escolhe agir segundo o “espírito esportivo” em detrimento do seu interesse estratégico.

O ato de Luiz Adriano gerou críticas e revolta não apenas entre os jogadores dinamarqueses, como também por parte do seu treinador, da torcida presente e da imprensa mundial (BBC, 2012; Ekstra Bladet, 2012; SporTV, 2012; The New Zeland Herald, 2012; Gazzetta Dello Sport, 2012; The New York Times, 2012; Larsen, 2012).

No ritmo de toda essa repercussão negativa, a Uefa, federação de futebol europeia responsável pelo torneio, decidiu abrir um inquérito disciplinar para apurar se o jogador não teria violado os princípios de conduta previstos no art. 5º do código disciplinar da entidade (UEFA ,2012). Apenas uma semana depois do jogo, Luiz Adriano foi julgado e disciplinarmente punido com a suspensão por uma partida da competição e com a obrigação de prestar serviços comunitários por um dia (Globo, 2012).

Dentre as várias possibilidades de conjecturas a partir do caso, pode-se debater, por exemplo:

I. Se acaso Luiz Adriano sentiu remorso, e qual sua possível eficácia e relação com o fair play como dever moral ou como expectativa social (debatendo, assim, os conceitos e a fronteira entre normas morais e normas sociais).

II. A reação externa dos atletas da equipe adversária, do treinador, da torcida e da imprensa como manifestações de uma normatividade social.

III. A necessidade ou desnecessidade da punição institucionalizada (até que ponto a punição descaracteriza o caráter moral e cortês do fair play?) e como ela se diferencia de um eventual remorso e da documentada reação externa ao ato de Luiz Adriano.

Além da evidente pertinência do caso para o ensino da Teoria da Norma Jurídica de Bobbio, ele também pode ser explorado em outros contextos também caros à formação jurídica, v.g., para debater o agir moral e a distinção entre Moral e Direito em Kant, bem como a distinção entre racionalidade estratégica e racionalidade comunicativa em Habermas.

Apliquei o caso como parte de um exercício avaliativo em duplas após aulas expositivas sobre a Teoria da Norma Jurídica, com discussão em sala, na aula seguinte. Não segui um roteiro bem estabelecido. Preocupei-me em provocar os estudantes a expor argumentos sobre a relação entre o caso e os conceitos da Teoria da Norma Jurídica e a expor também possíveis méritos e falhas da teoria sistematizada por Bobbio.

O caso foi utilizado por mim num caminho dedutivo: dos conceitos teóricos apreendidos anteriormente para sua aplicação numa situação concreta. Contudo, é perfeitamente possível o caminho inverso, i.e., com a apresentação da situação e com a formulação de perguntas para instigar os estudantes a tirarem suas próprias conclusões sobre as características dos diferentes tipos de normatividade envolvidos, permitindo assim o aprendizado dos conceitos (“norma moral”, “norma social”, “norma jurídica” etc.) por indução. A eficácia da via “indutiva” de teorias como técnica pedagógica já foi atestada, e.g., no campo da Engenharia, cujo ensino costuma ser dedutivo a partir de teorias e sua aplicação (cf. Prince; Felder, 2006). No campo jurídico, precisamos de mais estudos. De todo modo, intuitivamente parece ser bastante interessante, em especial no âmbito dos conceitos da Teoria Geral do Direito.

Minha percepção, a partir do comportamento das turmas e de alguns retornos (feedbacks), informais e voluntários, de alguns discentes, foi a de que os objetivos de produzir maior envolvimento dos alunos com a disciplina e aumentar as chances de aprendizado e memorização foram alcançados. É apenas uma impressão. Para o futuro, seria muito importante realizar pesquisas de eficácia das diferentes técnicas de ensino no campo do Direito.

Há, claro, muitas maneiras de se fazer isso. Consigo rascunhar, aqui, um desenho de pesquisa em que um grupo (e.g., uma sala) é exposto a um ensino com determinadas técnicas de pesquisa (grupo experimental), e outro grupo não (grupo de controle), com posterior testagem para dimensionar o aprendizado e memorização de longo prazo em cada um dos grupos testados (e.g., uma avaliação-surpresa meses depois do término da disciplina e comparação entre o grupo experimental e o grupo de controle).

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Referências

BBC. Shakhtar Donetsk striker Luiz Adriano charged after goal. BBC Sport Football, 21 November 2012. Disponível em http://www.bbc.co.uk/sport/0/football/20436292. Acesso em 14 jan. 2013.

BOBBIO, N. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista; Ariani Bueno Sudatti. Bauru: EDIPRO, 2001.

__________. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Rev. Técnica Cláudio de Cicco. 6 ed. São Paulo: UnB, 1995.

BUENO, L. A.; CONSTANTE, P. S.; DOMINGUES, L. B.; FONSECA, J. G. H. M.; LEITE, M. V. F. T.; MANSOLDO, M. C. N.; MIRANDA, V. O.; RESENDE, C. S.; ROSA, M. B.; UGARTE, N. I. Novas perspectivas para a educação jurídica. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014.

EKSTRA BLADET. Kryber til korset: Nu undskylder Adriano. Ekstra Bladet, 22 Nov. 2012. Disponível em http://ekstrabladet.dk/sport/fodbold/udenlandsk_fodbold/championsleague/article1870081.ece. Acesso em 14 jan. 2013.

GAZZETTA DELLO SPORT. Shakhtar, che cosa combini? Ottavi e gol da scandalo. Gazzetta Dello Sport – Calcio, 20 Novembre 2012. Disponível emhttp://www.gazzetta.it/Calcio_Estero/Primo_Piano/20-11-2012/shakhtar-che-cosa-combini-che-beffa-gol-anti-fair-play-913276889035.shtml. Acesso em 14 jan. 2013.

GLOBO. Luiz Adriano é suspenso por um jogo e desfalca Shakhtar contra Juventus. GloboEsporte.com, 27 de novembro de 2012. Disponível emhttp://globoesporte.globo.com/futebol/liga-dos-campeoes/noticia/2012/11/luiz-adriano-e-suspenso-por-um-jogo-e-desfalca-shakhtar-contra-o-juventus.html. Acesso em 16/01/2013.

LARSEN, J. Football world condemns Shakhtar Donetsk for foulest fair play. Kyiv Post, Nov. 21, 2012. Disponível em http://www.kyivpost.com/content/sport/football-world-condemns-shakhtar-donetsk-for-foulest-fair-play-316468.html. Acesso em 14 jan. 2013.

PRINCE, M. J.; FELDER, R. M. Inductive Teaching And Learning Methods: Definitions, Comparisons, And Research Bases. Journal of Engineering Education, v.95(2), p.123–138, 2006.

RIBEIRO, R. J. Não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme. Tempo Social, v.11(1), p.189-195, maio de 1999.

SPORTV. Gol de Luiz Adriano afeta a imagem de todo o Brasil, diz jornalista. Redação Sportv, 21 de Novembro de 2012. Disponível em http://sportv.globo.com/site/programas/redacao-sportv/noticia/2012/11/gol-de-luiz-adriano-afeta-imagem-de-todo-o-brasil-diz-jornalista.html. Acesso em 14 jan. 2013.

THE NEW YORK TIMES. Champions League: Matchday 5(A). The New York Times Soccer Blog, November 20, 2012. Disponível em http://goal.blogs.nytimes.com/2012/11/20/champions-league-matchday-5a/. Acesso em 14 jan. 2013.

THE NEW ZEALAND HERALD. Soccer: Unfair play charge after drop ball goal. The New Zealand Herald, 21 de Novembro de 2012. Disponível emhttp://www.nzherald.co.nz/soccer-football/news/article.cfm?c_id=86&objectid=10849169&ref=rss. Acesso em 14 jan. 2013.

UEFA. Inquérito disciplinar a Luiz Adriano. Uefa – Futebol em Primeiro Lugar, 21 de Novembro de 2012. Disponível em http://pt.uefa.com/uefa/footballfirst/matchorganisation/disciplinary/news/newsid=1895845.html. Acesso em 14 jan. 2013.

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ALVES, Henrique Napoleão. Futebol: aliado da Educação Jurídica? Velho Trapiche, 15 de dezembro de 2015. Disponível em: https://velhotrapiche.wordpress.com/2015/12/15/futebol-aliado-da-educacao-juridica/. Acesso em 28 dez. 2015.

 

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